terça-feira, 15 de outubro de 2019

Aos filhos que não nasceram



Nunca falei sobre este assunto publicamente, talvez por ser recente, talvez por vergonha, talvez por ser demasiado doloroso.

Nunca estamos preparados para as perdas – sejam elas quais forem – no entanto, a perda gestacional parece sempre, aos ouvidos de quem só escuta de fora o que aconteceu, menos grave, menos importante.

“Não tinha de ser”; “não era a altura certa”; “antes agora que mais tarde” são frases que ouvimos de quem nos tenta consolar e, honestamente, nem sabe como. Acredito que a intenção é sempre a melhor, mas nada do que ouvimos nos sossega.

Soube que estava grávida no dia 17 de Julho de 2019. Abortei no dia 22 do mesmo mês.

Durante uma semana soube que mais uma vida gerava dentro de mim, fiz planos na minha cabeça, pensei nas coisas que teria de comprar, relembrei as angústias da gravidez e brinquei com isso. Soube, desde logo, que seria um menino…

No dia 22 por volta das 12h comecei a sangrar e fui imediatamente para o hospital.

A história que se segue podia ser fruto de um argumento retorcido para um filme, para uma tragédia, para uma chamada de atenção ao sistema de saúde. Mas não foi, foi real. Foi comigo.

Ainda que nada atenue a perda gestacional, infelizmente, esta é uma realidade de muitas mulheres. O que não pode ser uma realidade é aquilo que se segue, excerto da reclamação feita ao hospital em causa:

 “Dei entrada no hospital pelas 12h20, informei o que se estava a passar e fui encaminhada para as urgências. O Dr. de serviço atendeu-me e disse-me que teria de fazer uma análise ao sangue para confirmar a gravidez. Indignei-me e perguntei-lhe se não seria observada por ninguém. Disse-me que teria de aguardar pela análise.

O que se seguiu foram 2 horas de espera, onde nada aconteceu, a não ser o meu aborto.

Fui educada para acreditar que os médicos salvam vidas e promovem o bem-estar dos seus doentes, tentando sempre agilizar qualquer dor ou desconforto que estes possam sentir. Obviamente que nenhuma das situações se passou comigo.
Senti-me abandonada num sítio onde deveria ter sido acolhida e bem tratada. 
Será normal entender que num hospital, onde uma das pacientes grita por diversas vezes que está a ter uma hemorragia, ninguém tenha perguntado se precisava de um penso? Duma compressa? Dumas cuecas descartáveis?
Será normal ninguém se ter importado com o facto de estar a ter um aborto espontâneo? Por algum acaso alguma das pessoas que ali estava, nomeada e especificamente os médicos, se questionou se aquela seria a minha primeira gravidez ou não? Se já tinha filhos? Se tinha feito tratamento para engravidar? Não! Ninguém se importou com coisa nenhuma. Senti-me abandonada, negligenciada, maltratada, onde me deixaram num canto qualquer de uma sala de espera enquanto me esvaía em sangue e assimilava na minha cabeça que estava a perder o meu bebé, sozinha e desamparada!

Ninguém se importou com isto! Ninguém quis saber!
Será este comportamento normal ou esperado num hospital?
Não pode ser! Não posso conceber que é isto que fazem com pessoas nas mesmas circunstâncias que eu. E ainda assim, não me posso calar e deixar esta situação passar em branco como se de uma situação leviana se tratasse.
Na minha cabeça eu não deixo de pensar que se tivesse sido vista assim que cheguei ao hospital, lugar que confiei e que me dirigi numa situação desesperada, neste momento ainda poderia estar grávida.

Ainda assim, gostava de perguntar-vos, na vossa opinião por que motivo existem cuidados paliativos nos hospitais? Se tentamos proporcionar aos doentes terminais o maior conforto possível no final das suas vidas, porque é que uma mãe grávida e a abortar espontaneamente nas instalações dum hospital não é dotada do mesmo tratamento, onde não é sequer observada, confortada, ouvida? Confio que não acharão esta comparação exagerada, afinal falamos de vidas, certo? Uma a acabar e outra a começar, mas que infelizmente, não começou…

Não posso encarar esta situação de outra forma se não como uma negligência brutal de todos os médicos, funcionários e demais envolvidos perante o quadro que eu apresentei assim que fiz a inscrição nos vossos serviços.
Se o vosso hospital não tinha capacidade de resposta perante as minhas queixas deveriam ter-me encaminhado para outro hospital, assim que aí cheguei, ainda assim, se a funcionária não era a pessoa certa para tomar esta decisão, o Sr. Dr., como profissional de saúde que é, ao tomar conhecimento do que se passava comigo, só deveria ter tido então a mesma atitude e encaminhar-me para o sítio correto. Mas, mais uma vez, meus senhores, ninguém se quis importar. Ninguém quis saber. Ninguém fez aquilo que estaria obrigado a fazer! Salvar uma vida!
Para além de tudo isto, fiquei com a certeza que ninguém sabia muito bem o que estava a fazer, pois o médico de clinica geral afirmou, durante uma hora, que já tinha passado o processo para a ginecologia e quando cheguei à ginecologia ninguém sabia quem eu era ou de onde vinha, incluindo o ginecologista, que só depois da auxiliar falar com ele é que inseriu os meus dados no computador. Nada disto foi simplesmente deduzido por mim, pois quando liguei para o hospital, posteriormente a este episódio, o único registo que têm é a minha entrada no serviço de atendimento permanente, nada mais!
Não consegui escrever esta reclamação antes, pois ainda é demasiado doloroso relembrar toda a angústia, todo o sangue a escorrer-me pelas pernas, toda a vida do meu bebé a se esvair dentro de mim. A vergonha duma situação tão privada se ter tornado pública com o objetivo de a ver resolvida e ainda assim, ter que sair de um hospital cheia de sangue, lavada em lágrimas e completamente descontrolada, por, depois de esperar 2 horas, ninguém ter tido a decência, a vontade, a preocupação de me atender…”


Este texto não serve para consolar quem teve uma perda gestacional, porque não há consolo possível. Pensamos que estamos bem, e de repente vem um sonho sobre o assunto; pensamos que estamos bem e não evitamos as lágrimas quando alguém nos conta que passou pelo mesmo; pensamos que estamos bem, mas não encaramos uma próxima gravidez com a mesma leveza. Este texto serve para alertar e denunciar situações como a minha que nunca, mas nunca, poderiam acontecer. Um hospital, público ou privado, nunca poderá receber uma paciente grávida com uma hemorragia e deixá-la entregue à sua sorte enquanto se aguardam resultados de análises.

A minha escrita é agressiva e demonstra toda a minha revolta perante este episódio, pois a minha luta é contra o hospital. 
Para o meu filho que não nasceu foram todas as lágrimas que nem sabia ser possível derramar, foi a apatia dos dias que se seguiram, o desnorteamento perante tudo e todos, o vazio que não se consegue explicar. Foi o choro baixinho no banho, foram os abraços mais demorados e apertados à minha filha. Foi o amor que não terminou.

Aguardo ainda a resposta a esta reclamação e por esse motivo o nome do hospital (privado) não foi revelado, no entanto, por mim e pelas mulheres que certamente já passaram por situações semelhantes, continuarei nesta luta para que a minha voz se faça ouvir, já que na altura devida, falhou.








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